Matéria de Tiago Medina – Matinal Jornalismo em 07 de junho de 2024
A deputada estadual Sofia Cavedon (PT), em representação conjunta com entidades da sociedade civil, pediu para que o Ministério Público de Contas (MPC) acione o Tribunal de Contas do Estado (TCE) solicitando a anulação do leilão do Cais Mauá, realizado no início do ano. Feito na última segunda-feira, o pedido ocorre em momento em que o contrato da concessão ainda não foi assinado e não há prazo para ser formalizado, em razão de decreto de calamidade do governo do estado.
A representação foi entregue ao procurador Ângelo Borghetti e lista dez motivos para a anulação, que vão desde o que se considera falhas do governo do estado no processo de licitação à falta de manutenção do sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre. Em caso de confirmada a concessão, as estruturas do sistema de defesa no Cais ficariam sob responsabilidade do consórcio vencedor da licitação. Não existe um prazo definido para a conclusão da análise do documento por parte do MPC.
Para a parlamentar, a atual enchente mostrou ser essencial que o Cais Mauá permaneça sob gestão pública. “É algo muito sério, muito severo. Se o governo quer mesmo controlar o sistema de proteção, ele precisa ter isso em suas mãos”, comentou. No Cais, ficam três das 14 comportas que integram o sistema de proteção, além de o local ser delimitado pelo Muro da Mauá, que também integra a barreira anti-enchentes.
Cais como uma “área estratégica”
Cavedon argumenta ser arriscado para a cidade deixar o Cais Mauá sob gestão da iniciativa privada por conta de uma possível falta de compromisso com a manutenção das defesas. “Nossa tese é que aquela área precisa se tornar uma área estratégica na mão do poder público, com a primeira função de proteção da cidade. Depois, espaço de investigação, com museus e universidades”, afirmou. “Não dá pra imaginar shopping, restaurantes.”
A deputada também lembrou que antes da atual concessão, o Cais Mauá já permaneceu cedido à iniciativa privada por nove anos, onde não houve investimentos no local, além de depreciação do patrimônio. Assinado pela ex-governadora Yeda Crusius (PSDB) em 2010, o contrato foi rompido no primeiro ano da gestão Eduardo Leite (PSDB), que passou a articular outro formato de concessão desde então.
Único concorrente e vencedor do leilão do Cais Mauá, o consórcio Pulsa RS assumirá o compromisso de investir mais de R$ 353,3 milhões e, como contrapartida à reforma que terá de fazer nos armazéns, poderá explorar comercialmente os espaços, além de poder erguer torres comerciais e residenciais na área onde hoje ficam as docas, próxima à rodoviária.
Tal utilização também embasa o pedido para anulação: “As ocupações de caráter permanente não se sustentam com as recorrentes inundações”, destaca o requerimento, que também cita a possível retirada de parte do Muro da Mauá. Em substituição, haveria uma barreira fixa de 1,26m de altura e uma estrutura móvel para alcançar a cota do muro, de 3m. Essa nova proteção ficaria entre o Guaíba e os armazéns e não entre o Cais e o Centro, como é atualmente.
Hoje área alagável, o Cais Mauá passou ao menos 26 dias inundado ao longo de maio. A situação causou avarias tanto pela força da água, como a queda de portões de armazéns históricos, quanto pela ação humana, na remoção da comporta feita pelo Dmae, em 17 de maio, para o escoamento no Centro.
De acordo com a Secretaria de Reconstrução Gaúcha, não há uma análise sobre os danos causados até o momento. Apesar de repiques pontuais, a água só foi retornar ao leito do Guaíba no local entre 28 e 29 de maio – no cais, a inundação teve início na noite de 2 de maio.
Além da deputada Sofia Cavedon, assinam o requerimento entregue ao MPC representantes de Coletivo Cais Cultural, Projeto de Extensão Ocupação Cais do Porto Cultural, Projeto de Extensão Práticas de Patrimônio Insurgente, Núcleo de Estudos em Gestão Alternativa, Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles e Laboratório de Políticas Públicas e Sociais.
Área do Cais Mauá ficou toda inundada desde 3 de maio | Foto: Gustavo Mansur / Palácio Piratini
Complexas, mudanças no sistema de defesa são previstas no edital
Defendida, ao menos até o ano passado, pelo governador Eduardo Leite (PSDB) e pelo prefeito Sebastião Melo (MDB), a demolição de parte do Muro da Mauá é prevista em edital de concessão do Cais Mauá, desde que uma alternativa com barreiras de contenção seja aprovada por órgãos técnicos, como Dmae e Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS. Um laudo anexado aos documentos do edital afirma que é viável a substituição. Há quatro modelos sugeridos para esta troca, mas o consórcio é livre para indicar outra possibilidade.
No entanto, qualquer que seja a escolha não será simples. Em reportagem da Matinal em novembro do ano passado, o professor do IPH Fernando Dornelles destacou que a implantação de um sistema móvel de defesa, mesmo que viável, seria mais arriscado do que o muro, por conta da logística necessária, considerando desde local para armazenar as estruturas móveis a pessoal disponível para montá-las em tempo hábil. “Entre um muro de concreto e um sistema de três quilômetros de vulnerabilidade, eu tenho medo de trocar”, comparou, à época.
A mudança neste trecho do sistema de proteção contra as cheias de Porto Alegre também é objeto de um termo de cooperação que integra a documentação do edital de concessão do Cais Mauá. Trata-se de um acordo prévio entre o governo do estado e a prefeitura da capital, que visa, dentre outros pontos, incluir a área do Cais Mauá no sistema de proteção para efetuar a remoção parcial do muro.
Contrato sinaliza Cais em área inundável e cita riscos a consórcio
A palavra “enchente” aparece três vezes no contrato a ser celebrado entre consórcio e governo do estado. Sinaliza que a iniciativa privada compreende que, atualmente, a região não está protegida contra eventual inundação do Guaíba:
Além disso, nos tópicos quanto aos riscos do empreendimento, é considerada a possibilidade de indenizações em razão de enchentes:
A Matinal contatou o Pulsa RS para comentários sobre como o consórcio pensa o sistema de defesa e a respeito de danos no local causados pela enchente. O grupo, contudo, não retornou à reportagem.
Prejuízos de hoje (e de ontem)
A GZH, empresários do Cais Embarcadero estimaram em pelo menos R$ 10 milhões o prejuízo com a enchente em áreas internas dos 40 estabelecimentos do local, conhecido por praticar preços pouco acessíveis à maioria da população. Ainda assim, já 2022, um dos sócios do local, Eugênio Corrêa, cogitava rever o contrato com o governo do estado – demanda que terá de ser revista com o consórcio na formalização da concessão.
Naquele momento, Corrêa estudava se credenciar ao edital de concessão do Cais, o que acabou não ocorrendo. Apesar do cenário não favorável relatado dois anos atrás, afirmou à época: “Nosso negócio é consolidar o Embarcadero”.
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