As alterações promovidas pelo Ministério da Saúde em fevereiro na Rede Cegonha, mudando a base do atendimento materno infantil no novo formato denominado Rede Materna e Infantil, sem pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) do Sistema Único de Saúde (SUS), foram debatidas na audiência pública promovida na manhã desta quarta-feira (15) pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia. O impacto da portaria do MS reverte ações empreendidas há 11 anos pela Rede Cegonha na preservação da vida das mulheres e redução da mortalidade materna e infantil, além de retomar a prática de cesarianas, que no RS é de 64% entre as parturientes e no país, 57%. O assunto será levado à secretária de Saúde, Arita Bergmann, para articular uma reação coletiva dos gestores estaduais e municipais de saúde à portaria que descumpre a pactuação do SUS e promove retrocessos nos cuidados da saúde reprodutiva e sexual das mulheres.
A audiência foi solicitada pela deputada e Procuradora da Mulher da Assembleia, deputada Sofia Cavedon (PT). Ela observou que os indicadores têm sido negativos para as mulheres no RS não só em relação ao feminicídio, mas nas mortes em decorrência do parto, que entre 2019 e 2021 vitimaram 114 mulheres. Além da agenda com a secretária da Saúde, a deputada vai acompanhar ação movida pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal, questionando o descumprimento da pactuação tripartite e também a Portaria 937 do MS que instituiu o Programa Cuida Mais Brasil, outra medida que não tem acolhimento entre os gestores de saúde estadual e municipais. A deputada Luciana Genro (PSOL) acompanhou a discussão.
A ex-coordenadora nacional da Rede Cegonha/Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, a médica obstetra Esther Vilela, adiantou que a Rede Cegonha foi construída como política pública para assegurar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, que em última instância são direitos humanos consagrados e deveriam ser consolidados pelo governo. Explicou que a estratégia da Rede Cegonha estava articulada com outros ministérios e no MS, vinculada à ciência e tecnologia para enfrentar a alta mortalidade materna e infantil. Tinha por objetivo, também, fazer com que a gravidez, o parto e o puerpério se tornassem momento de promoção da vida das mulheres, e não de sofrimento ou violência obstétrica. Em uma década, as cesárias foram reduzidas para menos de 50%, mas nos últimos anos o procedimento pontua 57%, com repercussão que afeta não só as mulheres, uma vez que a maior causa de morte é em decorrência de hemorragias, mas os bebês, que são privados das vantagens do aleitamento materno na maioria dos casos.
“Para enfrentar os direitos da mulher e o exercício da reprodução da sexualidade de forma respeitosa, era preciso avançar nas questões de gravidez, parto e abortamento”, destacou a obstetra, ao relatar mudanças que impactaram no modelo de atenção ao parto praticado no país, centrado no médico, no hospital e em intervenções obsoletas e não recomendadas pelas evidências científicas. Para assegurar o bem-estar da mulher e do bebê, a Rede Cegonha incluiu as enfermeiras obstétricas em todas as ações de saúde reprodutiva e sexual das mulheres, inclusive com autonomia para condução da assistência ao parto de baixo risco do início ao final. Outro pilar foi o Centro de Parto Normal, protegido da rotina hospitalar e reforçando a fisiologia do parto e o protagonismo da mulher. Estas medidas também estavam acompanhadas de financiamento específico, agora modificadas e retornando ao modelo anterior, com orientação sem enfermeiras obstétricas, centrado no médico e sem parto normal, doulas e plano de parto, retirando das mulheres o poder de decisão sobre o parto e induzindo à cesárea a pedido, “é a falência do modelo obstétrico”, criticou Vilela. Também a Caderneta da Gestante sofreu alterações e agora consta a cesárea a pedido, que vai repercutir no SUS e no potencial aumento da mortalidade materna no país, uma vez que as cesárias sucessivas aumentam o risco de morte pós-parto, alertou.
Cresce mortalidade materna no RS
A presidente da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras, a professora associada Virginia Leismann Moretto, apontou descumprimento também do artigo 196 da Constituição Federal, que assegura o direito à saúde para todos, além da lei do SUS que exige a pactuação das políticas públicas. Ela destacou o Boletim Epidemiológico da Secretaria Estadual da Saúde que aponta o crescimento em dois anos (2019/2021), no RS, da mortalidade materna, de 54 para 114 mortes, no período da pandemia, resultado da negligência em oferecer vacina com prioridade para as gestantes e puérperas lactantes. A maior incidência de mortes é entre as mulheres negras. Nesse mesmo período, no país também dobrou a mortalidade materna.
Virginia Moretto referiu a orientação da Rede Cegonha voltada para as futuras gerações, partindo do parto e nascimento com dignidade e autonomia e resultando numa sociedade melhor. Para isso, houve qualificação de profissionais para o parto, para enfermeiras obstétricas e políticas específicas, com diretrizes para cesariana e parto normal conforme evidências científicas. Tudo isso foi objeto de estudo da Fiocruz, que confirmaram o alcance dos melhores resultados com a rede, inclusive com repercussão na rede privada na questão da cesárea. Ela criticou orientações contidas na nova Carteira da Gestante, como manobra violenta que provoca danos à mãe e ao bebê, prática proscrita pela OMS, mas elogiada no âmbito do Ministério da Saúde. E elogiou a presença da enfermagem obstétrica na atenção ao parto e nascimento. Para Moretto, a Rede Materno Infantil fala em “cultura da paz” para confundir as mulheres e contrapor a violência obstétrica enfrentada como estratégia de comunicação na Rede Cegonha. Alertou que a nova Carteira, editada em 3 de maio, afirma que foi articulada com as secretarias estaduais de Saúde, mas não houve consulta, “pactuação zero”, afirmou. Observou, também, que orienta sobre a cesárea a pedido, “isso confunde as mulheres, e a cultura da violência vem para ratificar a cesariana”, contrariando orientação da OMS para o plano de parto ao invés da cesárea. E criminaliza o aborto legal, fragiliza as mulheres vítimas de violência e estupro e leva o assunto para dentro das delegacias de polícia.
Redução do aleitamento materno
A enfermeira da Atenção Básica da Estratégia de Saúde da Família do Conselho Estadual de Saúde, Inara Ruas, classificou as duas portarias como “desmonte da Estratégia da Família” e ataque ao SUS, lamentando a distorção da Carteira da Gestante, instrumento que permitia orientar sobre o pré-natal e a gestação. Sobre a Cartilha do Abortamento, disse que vai transformar os profissionais de saúde em X-9 da polícia, uma vez que terão que denunciar os casos às autoridades de segurança.
Outra advertência veio de Cris Machado, da Associação Gaúcha de Consultoras em Aleitamento Materno, que referiu o índice de 64% de cesárias no RS e a repercussão no aleitamento materno, uma vez que somente 40% chegam ao sexto mês amamentando. Explicou a relação com o aumento da mortalidade materna e também de hemorragia, por falta de manejo ou violência obstétrica, situação que provoca anemia e reduz a produção de leite. O parto normal, ao contrário, permite o aleitamento materno pelo período de 2,5 anos. A meta da OMS para 2030 é atingir 70% dos bebês no planeta amamentados, mas em 40% no RS “será possível atingir esse patamar”, avisou. O desmonte capitaneado pelo governo federal está vinculado à indústria de substitutos de aleitamento materno, que gira R$ 55 bilhões anuais no país, explicou.
A Chefe da Divisão de Políticas de Ciclos de Vida da Secretaria Estadual da Saúde, Gisleine Lima da Silva, disse que o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais e Municipais de Saúde defendem a revogação da portaria do MS por ferir os princípios do SUS, criticou vários aspectos da Rede Materno Infantil e alertou para “cenário epidêmico de cesarianas, prática elevada que provoca alta taxa de prematuridade, de ocupação de leitos UTI Neo, maior probabilidade de hemorragias, uma das principais causas de óbito materno no RS”. E alertou que o Programa Cuida Mais Brasil também não foi pactuado e veio para desorganizar o modelo de Atenção Primária à Saúde com a regionalização dos serviços, contrariando o modelo que é de âmbito municipal. A SES é contra a adesão do RS ao programa e no âmbito da gestão do SUS, não haverá adesão às portarias do MS.
A Procuradora do Ministério Público Federal, Suzete Bragagnolo, informou que o MPF do Distrito Federal oficiou o Ministério da Saúde a respeito da aprovação tripartite, o que motivou a suspensão da ação em curso pelo MPF/RS. Sobre o manual do abortamento, observou que “eventuais inovações no mundo jurídico, contrariando a lei, não geram obrigações aos profissionais de saúde sobre o aborto legal”.
Pelo setorial de Saúde do Partido dos Trabalhadores, a enfermeira Gerusa Bittencourt pontuou que “a reinvenção da política pública, redesenhada sem o controle social, é mais ataque à democracia”.
Fonte: Agência de Notícias da ALRS