Em audiência pública na noite desta segunda-feira (6), a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos reuniu diversas entidades que lutam para que o prédio do Dopinho, casarão localizado na rua Santo Antônio, em Porto Alegre, e local de prática de tortura e detenção clandestina de prisioneiros ilegais pela ditadura militar, em 1964, seja transformado em Centro de Memória. A iniciativa é liderada pelo Instituto Sig-Psicanálise & Política, ao lado de entidades que atuam nos diversos aspectos da política de memória, para retirar da invisibilidade a violência que recaiu sobre atores políticos, seus familiares e a sociedade através da prática de tortura de estado durante o golpe militar.
A questão retornou à pauta em função de que o imóvel, que acolheu o local como espaço de tortura e repressão pelos agentes da polícia e militares na ditadura, a partir do Departamento de Ordem Política e Social, se trata de propriedade privada e foi colocado à venda. Na gestão do ex-prefeito José Fortunati, o Dopinho foi tombado, mas o processo não teve continuidade na prefeitura de Porto Alegre.
Nos encaminhamentos, o grupo deliberou em acionar a reitoria da UFRGS para que solicite à Secretaria do Patrimônio da União a doação de imóvel federal ao atual proprietário do Dopinho, justificando a necessidade do local para a implementação do Centro de Memória, e acionar também a ministra Macaé Evaristo, dos Direitos Humanos, e MINC, tendo em vista a interseccionalidade do tema. Outra questão foi a retomada do tombamento junto ao atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, para que o proprietário seja notificado.
A deputada Sofia Cavedon (PT), que coordenou a audiência para tratar da implantação do Centro de Memória no antigo prédio identificado como “Dopinho”, em Porto Alegre, relatou a demanda recebida por mais de 30 entidades, em agosto, aprovada na Conferência Livre de Direitos Humanos, e encaminhou o tema tanto para a CCDH quanto aos órgãos pertinentes do governo federal. Simultâneo a isso, apresentou projeto de lei no sentido de que o Dopinho seja considerado de relevante interesse histórico e cultural do RS.
A psicóloga Maria Luiza Castilhos Flores relatou a mobilização do Instituto Sig-Psicanálise e Política, que busca o resgate à sociedade da memória deixada nas sombras, tornada esquecimento, “a memória é como luz, nos orienta para o futuro, e precisa da participação social da cidade como energia, para as devidas reparações, perdas e danos sofridos”.
Outras entidades, como APPOA, Fórum das Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro, Núcleo de Pesquisa sobre Políticas de memória da UFPel, complementaram com estudos acadêmicos sobre a articulação da repressão e violência política implementados no Rio Grande do Sul pela ditadura militar, tanto no ambiente social e cultural, quanto nas áreas de fronteiras, tornadas como de segurança nacional, criando a conexão com a Operação Condor. A invisibilidade dessas ações, alertam as entidades, fazem parte da estratégia do esquecimento, e o Centro de Memória cumprirá o papel de desvendar esse “silenciamento” das atrocidades praticadas pela ditadura militar.
Impedimentos e possibilidades
Pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico, IPHAN, Rafael Passos explicou que o tombamento é ato que estabelece limite administrativo, com limitações em demolição do prédio ou construção na área, e além disso, (o tombamento) não influi na propriedade, “no momento que se tomba continua sendo edificação privada”. Por esse motivo, ele alertou que não é caminho natural para implantação de um Centro de Memória. E observou que o tombamento municipal foi homologado, mas não houve a notificação ao proprietário. Como se trata de questão política, o servidor recomendou articulação capaz de deslocar técnicos do órgão para que atuem nessa demanda, do Centro de Memória. E nesse sentido, recomendou o caminho da desapropriação.
O Superintendente da Secretaria do Patrimônio da União, Emerson Vitsrki Rodrigues, que em 2005 trabalhou na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, também relatou enxugamento de servidores pelo governo anterior nas tarefas de instrução de processos, que é a prerrogativa do órgão. Ele advertiu que está em vigor a Instrução Normativa Nº 3, de 2018, que em seu artigo 2 trata da permuta de imóveis e, conforme explicou, essa normativa é impedimento para a permuta de imóveis da União, por exemplo, para destinar ao Centro de Memória. Mas recomendou que a UFRGS tome a iniciativa de solicitar ao governo federal a permuta da área, “se outro órgão público assumir a responsabilidade por essa permuta, dou prioridade total para esse imóvel”.
Em modo virtual a representante do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Paula Franco, relatou o compromisso do órgão em reconhecer que no local houve violação de direitos humanos, conforme orienta a Comissão Nacional da Verdade, evidenciando o desmonte promovido pelo governo Bolsonaro em pastas relacionadas com esse tema, o que está exigindo agora retomada de estrutura e alinhamento de projetos. “No Brasil, ainda engatinhamos em política de estado pela memória, e em cada local requer diferentes soluções”, referindo-se às particularidades legais de cada imóvel envolvido, como é o caso do Dopinho.
Urgência
O ex-deputado Raul Carrion, do PCdoB, recomendou urgência e até mesmo pressão política para agilizar os procedimentos burocráticos e legais para a consolidação do Dopinho como centro de memória, uma vez que “não se trata de questão do passado, é atual e precisa urgência”.
Também o ex-deputado Raul Pont, do PT, destacou as dificuldades que perpassam processos dessa natureza e que através da burocracia paralisam iniciativas como essa, de tornar o Dopinho em Centro de Memória. Apoiou a ideia de que a UFRGS, como entidade federal, faça a solicitação para a desapropriação do local.
A deputada federal Maria do Rosário (PT), que atuou no governo Dilma Rousseff na Secretaria Nacional de Direitos Humanos, pediu diálogo com as instâncias do governo federal no sentido de que as determinações da Comissão Nacional da Verdade sejam efetivamente cumpridas, uma vez que mesmo aprovadas de fato não foram implementadas.
Do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, que cumpriu papel estratégico na denúncia e apuração de casos de tortura e perseguição aos ativistas políticas pela ditadura militar, desvendando o padrão de atuação da Operação Condor, lamentou que até hoje não avançou a ideia de transformar aquele local em espaço de memória.
Outra manifestação foi de Sergio Bittencourt, da Associação de Ex-presos e Prisioneiros Políticos, disse que “é política deliberada de apagamento da memória e é nosso dever lutar para fazer esse resgate”.
Neste sábado (11), o vereador Pedro Ruas (PSOL), vai instalar uma Frente Parlamentar em defesa de Memória e Justiça, às 17h, na frente do Dopinho.
Também a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz prepara espetáculo teatral a partir de estudo acadêmico sobre os locais de tortura utilizados pelos militares para a prática de tortura, como foi o Dopinho.