Alvo de críticas de entidades nacionais e internacionais, a cartilha “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, do Ministério da Saúde, recebeu uma nova saraivada de críticas. Desta vez, ela partiu de ativistas do movimento feminista e de representantes de fóruns e associações gaúchas que atuam na defesa dos direitos das mulheres e participaram na manhã desta sexta-feira (15) de audiência da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. A reunião foi proposta pela Procuradoria Especial da Mulher do Poder Legislativo e presidida pela deputada Sofia Cavedon (PT).
A cartilha, que está disponível no site da Biblioteca Virtual do Ministério da Saúde, diz que “não existe aborto legal” e defende que os casos em que há excludente de ilicitude sejam comprovados após investigação policial. Atualmente no país é autorizada a interrupção da gravidez em três situações: quando é decorrente de estupro, quando representa risco para a saúde da mulher e em casos de anencefalia do feto.
A proponente da audiência contextualizou o ambiente da edição do “manual do abortamento” já no início do encontro: “parece que neste quarto de século descobriram a existência das mulheres e, neste contexto de violência, alimentado por uma cultura machista, nos tornamos alvos preferenciais. O resultado disso é essa cartilha ilegal, que atenta contra a vida e a liberdade das mulheres”, disparou.
A Associação Americana de Juristas e a Comissão Feminista da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas denunciaram a cartilha do governo federal à Organização das Nações Unidas e pediram a interferência da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão da Mulher da entidade para evitar mais danos às brasileiras, que já encontram dificuldades para recorrer ao abortamento previsto em lei. Conforme a advogada Luciana Toss, que representou as duas entidades na audiência pública, muitos hospitais se recursam a fazer o procedimento, alegando objeções de consciência por razões morais ou religiosas.
Luciane relatou que, em 2017, aconteceram 1.636 abortos legais no Brasil, dos quais 19% envolveram mulheres adultas vítimas de estupro e 73% crianças e adolescentes também estupradas. Embora não existam estatísticas sobre o abortamento ilegal, ela acredita que apenas um terço das curetagens pós-aborto realizadas nos hospitais sejam relacionadas a abortos espontâneos. “Quase a metade das mulheres que fazem abortos ilegais precisam de internação hospitalar. Com essa cartilha, além de atacar um direito previsto em lei, o país seguirá optando pela morte das mulheres pobres de periferia”, criticou.
A Frente pelo Aborto Legal no Rio Grande do Sul vem denunciando o caráter criminalizador e punitivo do material. Segundo Cláudia Prates, representante da organização, a cartilha é a materialização da violência institucional de gênero e um “documento que ensina a torturar mulheres e crianças”. “Por conta da memória de maus tratos e da estigmatização pelas próprias instituições, as mulheres têm medo e vergonha de denunciar a violência. Quando algumas portas se abrem para isso, o governo federal que atua como se estivesse na Idade Média cria um dispositivo para revitimizar as mulheres e as meninas”, ressaltou.
Silenciamento
Embora reine o silêncio sobre a prática do aborto no Brasil, os poucos dados que existem revelam a ponta do iceberg de um problema de saúde pública, que se constituiu na quinta causa de morte materna no país. De acordo com a representante da Marcha Mundial de Mulheres, a jornalista Denise Mantovani, uma em cada cinco brasileiras, de 18 a 39 anos, já fez pelo menos um aborto, a maior parte deles de forma clandestina. “O recorte de classe é muito evidente. São mulheres pobres, negras, indígenas e migrantes, muitas das quais já têm e sustentam os filhos sozinhas. É essa população que a cartilha atinge e criminaliza”, alertou.
Para ela, o documento é um manual de atuação política e de restrição do poder das mulheres de decidir sobre seus corpos, construído a partir da aliança entre religião, direito e estado e do fortalecimento da “família tradicional heteronormativa”, que naturaliza a violência contra a mulher.
Os dados apresentados pela representante da Secretaria Estadual da Saúde, Rosângela Moreira, mostraram outra faceta do problema, que é gravidez na infância e na adolescência no Rio Grande do Sul. Segundo ela, de 2018 a 2021, nasceram 1.983 bebês gerados por meninas de 10 a 14 anos, representando um nascimento por dia. E em 2021 houve o registro de 3.186 estupros de vulneráveis no estado.
Os casos cujo estupro resulta em gravidez são encaminhados aos serviços de pré-natal de alto risco, que são orientados a não identificar a vítima às autoridades policiais, por determinação do próprio Ministério Público Federal, e não limitar a assistência legal à idade gestacional, seguindo o que recomenda a Federação Brasileira de Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e a Organização das Nações Unidas.
Entre os encaminhamentos da audiência, estão a elaboração de um documento reivindicando a retirada da cartilha da Biblioteca Virtual do governo federal e de uma manifestação contra os constrangimentos que o Ministério Público de Santa Catarina estaria promovendo contra a menina de 11 anos que quase teve o seu direito ao abortamento legal suprimido por uma juíza e aos profissionais da saúde que fizeram o procedimento. Além disso, a comissão deverá acionar o Promotoria da Infância em relação à garantia de assistência legal aos casos de gravidez na infância e adolescência no Rio Grande do Sul.
Fonte: Agência de Notícias da ALRS