A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) ouviu na manhã desta quarta-feira (22), em audiência pública virtual, a Frente dos Coletivos Carcerários do RS, grupo de familiares de apenados liderado por mulheres que articulam junto ao sistema prisional as garantias das pessoas em restrição de liberdade e seus familiares, entre as quais a imediata instalação da Ouvidoria Penitenciária, conforme prevê lei federal. Também reivindicam a imediata retomada da visitação de familiares aos apenados, uma vez que ainda vigoram as restrições impostas pela pandemia de Covid-19 nos presídios gaúchos. O debate foi promovido por iniciativa das deputadas Luciana Genro (PSOL) e Sofia Cavedon (PT).
Do debate, que reuniu a Frente dos Coletivos Carcerários, juízes e promotores de Justiça, defensores públicos e servidores da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE), familiares de apenados, advogados e entidades que atuam junto ao sistema prisional, resultou o encaminhamento de ofício à Secretaria de Segurança do RS e à SUSEPE, para a instalação da Ouvidoria Penitenciária no Estado, assim como nova ordem de serviço de retomada das visitas sociais e liberação de visitas íntimas e o retorno da visitação de crianças aos pais e mães apenados. Também o reconhecimento da Frente dos Coletivos Carcerários como interlocutora de ações pelas garantias asseguradas na Lei de Execução Penal, respeitando suas vivências na construção de protocolos ou ordens de serviço vinculados ao sistema prisional. Outra solicitação está relacionada à reciclagem de servidores penitenciários que convivem com os familiares e a identificação obrigatória na indumentária desses servidores.
A deputada Luciana Genro disse que o sistema carcerário não atende corretamente aos preceitos da Lei de Execução Penal, estando “longe de promover a ressocialização que se propõe”, uma vez que os apenados estão amontoados, muitas vezes em “masmorras” e em sua maioria são pessoas de baixa renda e escolaridade, “confinadas como forma de controle social, muito mais do que como ressocialização”, situação que é vivenciada pelos familiares dos apenados, que “sem terem cometido nenhum crime pagam pena elevada diante das dificuldades que encontram nas visitas e para assegurar os direitos de seus familiares em situação de cárcere”, afirmou. O debate na audiência surgiu justamente da demanda desses familiares, organizados pela Frente dos Coletivos Carcerários, na busca de diálogo com as instituições para as garantias previstas na lei das pessoas encarceradas. Genro destacou que é papel da CCDH introduzir na Assembleia o debate público do sistema carcerário e da situação de apenados e seus familiares no RS.
A deputada Sofia Cavedon destacou a ausência de interlocução da direção da SUSEPE na audiência e sugeriu reunião com o governo para tratar especificamente do cumprimento da Lei de Execução Penal e outras ações. Ela destacou o protagonismo das mulheres que se organizaram no coletivo e “são as vozes de quem cumpre pena, trazendo a vivência, impressões e acúmulo que têm junto aos seus familiares na interlocução com os órgãos responsáveis para que sejam respeitados”.
Visitas, identificação e reciclagem dos servidores penitenciários
A idealizadora e diretora da Frente dos Coletivos Carcerários do RS, Lisiane Pires, contou que sua vivência como usuária do sistema prisional resultou na articulação para assegurar “acolhimento e suporte aos demais usuários do sistema”. O Coletivo surgiu há um ano em Bento Gonçalves e hoje tem 46 comissões carcerárias nas 154 casas prisionais do estado. A meta é que todas as casas tenham o atendimento do Coletivo Carcerário, afirmou Lisiane, que abriu diálogos institucionais estratégicos com o Judiciário, MP e Defensoria Pública e também a SUSEPE. O Coletivo representa mais de 8 mil pessoas, atende em média mais de 100 pessoas por dia em grupos de whatsapp e faz atendimentos presenciais na frente das casas prisionais.
Ela encaminhou pautas como a instalação urgente da Ouvidoria Penitenciária no RS, conforme prevê a lei federal 13.460 de 16 de junho de 2017, e reivindicou as Unidades Básicas de Saúde nas casas prisionais com mais de 100 presos, uma vez que algumas penitenciárias no RS dispõem de estrutura e espaço para esses serviços. Sugeriu, ainda, a criação de portarias com a participação da sociedade civil organizada respeitando a realidade vivenciada pelos familiares, “temos propriedade e interesse nessas construções”, encaminhando pedido de criação de nova ordem de serviço para retomada de visitas, com contato social entre os familiares e também a visita íntima. Neste momento as visitas foram retomadas, mas sem contato social, o que está provocando divergências. As famílias pedem que a visita social de mães, filhas e filhos tenha o contato com o familiar privado de liberdade. Da mesma forma, as gestantes querem fazer as visitas sociais com os mesmos direitos dos idosos, ou seja, com o passaporte de vacinação comprovando as duas doses de imunização contra a Covid-19. Outra urgência é o retorno da visita das crianças aos pais e mães encarcerados, “pedimos apoio para que a Secretaria de Saúde retome essa visitação com urgência”.
Seguiram-se outras demandas, como a conclusão urgente da vacinação dos apenados tanto para Covid quanto tuberculose; a reciclagem dos servidores penitenciários com foco no trato humanizado e alinhamento; a identificação obrigatória dos servidores penitenciários que atendem presos e familiares, “todos os setores públicos têm por obrigatoriedade a identificação das pessoas, o que não acontece no sistema prisional”, destacou Lisiane, o que dificulta identificar servidor e provoca constrangimento e ameaça de violação da visita ou suspensão da carteira de visitação. Ela solicitou apoio da ALRS para intermediar agenda com a secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos e SUSEPE, a exemplo do que já ocorreu com o Judiciário.
A bacharel em Direito Ana Carolina mostrou os dados de segurança e execução penal no RS, onde 40.423 homens e 2.070 mulheres estão encarcerados em 154 unidades prisionais. Fruto do seu estudo de mestrado, ela apontou que “a fragilidade do sistema prisional com ausência de políticas públicas configura carência histórica que contribui para intensificar o domínio das facções criminosas, favores que são quitados pelos comandos assim que o preso ganha a liberdade e resulta em alto índice de retorno, 71,4% dos homens e 56,8% das mulheres”.
Dificuldades do sistema
O procurador de Justiça Gilmar Bortolotto confirmou a realidade exposta pela Frente de Coletivos e a confusão na construção de política pública para o sistema prisional resumida em aumento de vagas. Disse que as facções criminosas capturam a mão de obra fornecendo aos detidos ítens das necessidades básicas, o que gera sentimento de gratidão. Da experiência de quase duas décadas junto a Promotoria de Execução, fiscalizando presídios, Bortolotto observou que o tema central é ouvir os apenados, seus familiares e servidores para qualquer projeto relacionado a esse sistema. Defendeu a instalação da Ouvidoria como plataforma para a construção de políticas públicas com melhores resultados. “O sistema melhorou em relação ao passado, mas ainda é muito insuficiente”, afirmou. Para qualificar o atendimento é preciso ouvir as necessidades, ensinou o promotor.
A coordenadora do Núcleo de Execução Penal da Defensoria Pública, Cintia Luzzatto, também elogiou a atuação do Coletivo e evidenciou que as dificuldades no sistema penitenciário são identificadas pela Defensoria, “mesmo com as nossas prerrogativas enfrentamos isso também”. Disse que os pleitos encaminhados estão previstos em lei, como é o caso da Ouvidoria, e sugeriu que a reciclagem dos servidores se torne tema da Escola Penitenciária inclusive com abordagem feita pela Frente de Coletivos Carcerários. Defendeu a instalação das UBS nas prisões gaúchas com mais de 100 apenados, “é benefício aos próprios servidores, que evita o deslocamento do preso para estabelecimentos fora do sistema”, e a utilização do passaporte de vacinação para ampliar as visitações nas casas prisionais.
O juiz corregedor do Tribunal de Justiça, Alexandre Pacheco, enalteceu o diálogo do Judiciário com o Coletivo, “o movimento é legítimo e fundamental para o exercício da cidadania e o princípio da dignidade da pessoa humana, princípio constitucional fundamental e muitas vezes deixamos de observar no dia a dia em relação ao sistema prisional”. Ele observou que o sistema fomenta a criminalidade, evidenciado pelo retorno de 70% a 80%, com gasto de dinheiro público sem resultados, e defendeu políticas públicas mais efetivas durante a execução da pena. Além da Ouvidoria Penitenciária, Pacheco entende que é preciso a instalação de Conselho Gestor de Execução Criminal, espaço que pode ser criado pelo executivo ou por decreto para agilizar as decisões vinculadas às questões prisionais e de segurança pública.
Pela SUSEPE, Clédio Miller antecipou que há disposição para o diálogo e que o assunto da Ouvidoria será encaminhado à direção, mas antecipou que poderá ser colocada em breve em funcionamento. Do Departamento de Tratamento Penal, Camila Rosa relatou ações durante a pandemia, como a vacinação da primeira dose contra a Covid-19.
O deputado Jeferson Fernandes (PT), que representa a Assembleia junto ao Fórum Intersetorial Carcerário, elogiou a atuação das mulheres no Coletivo e falou sobre a experiência do novo método prisional que funciona no Partenon e em Pelotas.
A promotora de Justiça Adriana Cruz da Silva, da promotoria de Fiscalização de Presídios, disponibilizou os espaços do MP para a busca de garantia de direitos individuais dos apenados e anunciou a instalação de procedimento para acompanhar a garantia de ampliação das visitações. Também informou que em Porto Alegre e na Região Metropolitana será implementada a segunda dose da vacinação contra a Covid-19 nas casas prisionais para ampliar a visitação. Convidou a Frente dos Coletivos Carcerários para audiência na promotoria, “para que as demandas trazidas sejam encaminhadas e avaliadas pelo MP”.
Pela Comissão Carcerária, egressa do sistema e ativista de direitos humanos, Ana Paula Saugo relatou experiência de violações no período em que esteve presa preventivamente, revelando que “todos os direitos fundamentais são violados lá dentro”, situação que depõe contra o discurso da ressocialização, “enquanto houver um sistema que viole direitos básicos e fundamentais a ressocialização e a criminalidade vão aumentar”.
Do Coletivo Carcerário, o advogado Vinicius Boniatti defendeu a Constituição e pediu que o Judiciário e o MP prestem atenção às prisões preventivas, uma vez que representam a maioria no sistema carcerário. A vice-coordenadora do Conselho Tutelar de Porto Alegre, Cris Medeiros, observou que poucas vezes foi demandada por assistentes sociais sobre a situação deles em relação aos pais encarcerados.
Diversos familiares de apenados se manifestaram através do chat do YouTube, em especial em relação ao sofrimento das crianças pelo afastamento dos pais.
Fonte: Agência de Notícias da ALRS