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Lei Paulo Gustavo: Cultura é direito social

Por Sofia Cavedon e Clarissa Pont (*)

Artigo publicado no Portal Sul 21

Apoiamos a aprovação imediata do projeto de lei 73/2021, a Lei Paulo Gustavo, que chega à Câmara dos Deputados em um momento ainda muito difícil para o setor cultural brasileiro. Os fazedores de cultura de todo país seguem sofrendo com as consequências da pandemia da Covid-19 e do completo desmonte das políticas públicas para a cultura. A lei homenageia o ator, diretor e humorista Paulo Gustavo, vitimado pelo coronavírus em 4 de maio de 2021.

Após meses de intensa articulação para garantir a votação deste PLP no Senado, a aprovação se deu no dia 24 de novembro de 2021, por 68 votos favoráveis e apenas 5 votos contrários, graças a ampla maioria de senadores e senadoras da República que, mesmo diante da pressão do Secretário Especial da Cultura, atuaram em defesa daquilo que deve ser respeitado: o amparo a setores relevantes da economia e da sociedade como são aqueles relacionados às artes e à cultura. A ação no Senado possibilitou nossa primeira vitória que, ao se concretizar por completo, garantirá que os recursos da cultura sejam destinados para todas as regiões do país.

A cultura brasileira tem pressa!

No Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, de 1966, do qual o Brasil é signatário, está firmado o compromisso com a adoção das medidas necessárias para assegurar a manutenção, o desenvolvimento e a difusão da ciência e da cultura. Segundo a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Ciência, a Educação e a Cultura) a cultura é “(…) o complexo integral de distintos traços espirituais, materiais, intelectuais e emocionais que caracterizam uma sociedade ou grupo social. Ela inclui não apenas as artes e as letras, mas também modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, sistemas de valores, tradições e crenças”.

Na Constituição Federal de 1988, a cultura já aparece sob o ponto de vista das políticas públicas de responsabilidade do Estado brasileiro, ou seja, os direitos culturais passam a formar uma categoria essencial de direitos humanos fundamentais, digna de proteção e incentivo por parte dos poderes públicos estatais. Conforme art. 215 da Constituição “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

Portanto, acreditamos que a cultura seja parte constitutiva da garantia de acesso à direitos sociais, da construção de cidadania e da formulação de um projeto de nação. Este debate está inserido em um momento histórico em que avanços recém-conquistados no campo da formulação e institucionalização de políticas públicas para a área da cultura vêem-se ameaçados e onde a censura parece pesar sobre o campo da produção cultural, das artes e da educação no Brasil. Se há pouco tempo celebrávamos a institucionalização de um Sistema Nacional de Cultura abrangendo todo o país em uma tentativa de construção democrática de uma política pública para esta área específica, hoje parecemos lutar contra um cotidiano de acusações contra trabalhadores e trabalhadoras e uma política de desmonte da cultura como direito constitucional.

É importante ressaltar que, tradicionalmente, a gestão de políticas públicas para a cultura no Brasil foi conduzida de forma pontual e assistemática. É a partir do avanço do processo democrático que os espaços de participação da sociedade ampliaram-se e uma visão crítica disseminou-se no meio cultural, provocando a busca por novos caminhos para além da visão da cultura como elemento isolado, eventual e estanque.

Desde 2016, é flagrante o retrocesso nesta construção tão recente das bases de uma rede complexa que chamamos de política nacional de cultura no Brasil – que culmina na eliminação da pasta da Cultura como Ministério em janeiro de 2019, após breve supressão durante o Governo Temer, e na criação da Secretaria Especial de Cultura. Neste período, fica ainda mais clara a já citada desestruturação da institucionalidade da pasta – o corte de despesas para investir em áreas prioritárias; o ataque a maioria das áreas de atuação da pasta como a Lei Rouanet, Petrobrás Cultural, Caixa Econômica Federal, sistema S, a fusão dos ministérios de Cultura, Esporte e Desenvolvimento Social e a censura direta ao audiovisual, às artes cênicas e às artes visuais são apenas uma lista do que há de mais flagrante.

Segundo relatório de 2022 da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), a chamada indústria criativa perdeu 10 milhões de empregos em 2020 devido à pandemia, sendo que no mesmo ano, o Valor Agregado Bruto nos setores cultural e de lazer diminuiu US$ 750 bilhões. O documento “Remodelando Políticas para a Criatividade” mostra que o apoio para o desenvolvimento de projetos culturais e de lazer continua diminuindo.

Em vários países, as receitas do setor caíram entre 20% e 40%. Em pesquisa divulgada no início de 2022, a Unesco mostra que receita caiu 40% em alguns países; apesar do consumo de conteúdos culturais em plataformas digitais ter aumentado, artistas não lucraram com tendência; lembrando que a cultura representa 3,1% do PIB global.

A Unesco revela ainda que o acesso das pessoas a conteúdos culturais digitais aumentou. O relatório afirma ser necessário e urgente criar “sistemas de remuneração justos para artistas e produtores de conteúdos consumidos online”. Apesar do fluxo de bens e serviços culturais estar aumentando no mundo, tem havido pouco progresso para encurtar as disparidades entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Para a Unesco, a crise global causada pela pandemia expôs os “desafios para garantir a preservação da diversidade de expressões culturais no mundo”. O relatório destaca um outro lado: a pandemia deixou claro o valor essencial do setor cultural e criativo para gerar “coesão social, recursos educativos e bem-estar de pessoas em momentos de crise”.

O setor da Cultura e Arte tem impacto estimado de R$ 170 bilhões na economia brasileira, emprega cerca de 5 milhões de pessoas, formal ou informalmente, o equivalente a quase 6% de toda a mão de obra do País, em mais de 300 mil empresas de todos os tamanhos.

No RS, pesquisas apontam que as atividades culturais e criativas já representam 13% da indústria de transformação do RS, gerando cerca de R$ 6,3 bilhões anualmente, segundo dados da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul. Atualmente, o RS registra também mais de 48 mil microempreendedores individuais que atuam em áreas como publicidade, artes visuais, ensino da cultura, design e moda, entre outras atividades. O Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões RS conta com um cadastro de mais de 5 mil sócios e já emitiu mais de 16 mil registros profissionais. Só no Pró-Cultura RS, cadastro estadual que abriga artistas e produtores culturais aptos a acessarem os recursos da lei que opera o incentivo fiscal e o Fundo de Apoio à Cultura do RS são mais de 10 mil inscritos.

Justamente para atingir estes cidadãos e cidadãs que vivem atualmente uma crise emergencial e para garantir da produção, a distribuição, o fomento e a preservação da cultura é que surge a Lei Paulo Gustavo. Seguindo o modelo da Lei Aldir Blanc e aproveitando a experiência de sua implementação, a Lei dota o setor cultural de ações emergenciais a partir da execução descentralizada dos recursos federais transferidos a Estados, Distrito Federal e Municípios. Assim, promove o reforço do Sistema Nacional de Cultura, estimulando que os entes federados criem ou reforcem seus conselhos, planos e fundos de cultura.

Há inúmeros outros avanços na Lei Paulo Gustavo, como a obrigação dos gestores de cultura discutirem com o setor cultural os parâmetros de regulamentos, editais, chamadas públicas, prêmios ou quaisquer outras formas de seleção pública. Ela também criou a obrigação de ações afirmativas para mulheres, negros, indígenas, povos tradicionais, quilombolas e povos nômades, pessoas do segmento LGBTQIA+, pessoas com deficiência e outras maiorias sociais. A Lei Paulo Gustavo também possibilita que municípios escolham receber os recursos por meio de Consórcios Intermunicipais com atuação na área da cultura do qual façam parte.

Além de todo amparo necessário a um setor severamente impactado pelas consequências da pandemia, a Lei Paulo Gustavo também tem o mérito de tratar a cultura dentro de suas especificidades, sem aplicar sobre a execução dos projetos normativas excessivamente burocratizantes e, por isso, excludentes.

No que diz respeito às suas fontes de recursos, a Lei Paulo Gustavo determina a aplicação do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura e do Fundo Setorial do Audiovisual para seu financiamento, garantindo, assim, a efetiva destinação dos recursos da cultura para o próprio setor. Todas as regras fiscais foram observadas na redação da Lei, que não viola o teto de gastos, a regra de ouro ou a meta de resultado primário. A arte, a cultura e o conhecimento não possuem um partido ou uma única ideologia. São patrimônio comum que constituem a identidade brasileira, do saber e do fazer povo brasileiro em sua mais profunda dimensão. Por essa razão, reafirmamos que esse projeto de lei foi construído para o setor cultural brasileiro. Cultura é um direito fundamental!

Frente a esta realidade, lutamos pela aprovação imediata do Projeto de Lei 73/2021, a Lei Paulo Gustavo.

Sofia Cavedon é Deputada Estadual (PT/RS)

Clarissa Pont é jornalista e mestranda em Políticas Públicas